sábado, 16 de outubro de 2010

Decência, docência, inocência?

O último dia dos professores me trouxe algumas reflexões sobre a prática da decência contemporânea. Não, não foi um erro de digitação. Eu quis mesmo dizer decência, porque hoje pouco acredito na docência que não por decência, digo o ensino por vocação, fé, doação.

Muito já critiquei a visão do professor como agente de caridade. Quando comecei a trabalhar com educação, via os debates sobre a autenticidade do labor docente, como uma prática legítima do exercício social do trabalho e não como afetividade. 
Nas universidades isso pode ser autêntico, mas por outro lado, quando observamos a terrível realidade da educação básica hoje (e não estou falando apenas do ensino público), vemos que ser professor não pode ser dissociado de uma paixão veemente e de certo altruísmo. 
Ensinar, hoje, é sim um ato de doação. Mas não apenas para com os alunos. É um ato social. Todo bom e comprometido educador encerra não apenas com seus alunos e suas instituições um compromisso transcendental de trocas, mas sobretudo com a sociedade. 

Tudo isso porque os obstáculos visíveis e invisíveis que se erguem diante da prática pedagógica vão além de materiais físicos e estruturais. Quadros brancos, retroprojetores, multimídias? O maior muro que pode existir entre duas pessoas são suas próprias essências. Visões de mundo, percepções e materialidades educacionais que emergem de cada ser humano comumente entram em choque quando o necessário nesse momento seria um eclipse.

Uma obra cinematográfica incrível que nos mostra esses muros dos quais falei é o filme "Entre les murs", traduzido para nós como "Entre os muros da escola". Tão bem ficcionalizado que é, o filme parece um documentário sobre a realidade nas escolas das periferias de Paris. Ele mostra os grandes desafios vividos por docentes que trabalham nessas escolas, em que estudam adolescentes de diversas culturas do mundo, com ideologias e dogmas muitas vezes polares.


E o melhor de tudo é que, depois de expor todos os dramas da vida docente nesse contexto, esse filme não faz como muitas produções americanoides - também baseadas em fatos reais - que mostram um lindo final, em que as escolas se renovam e os professores conseguem mudar a realidade triste dos excluídos sociais. Não, os muros de Paris são altos, intransponíveis por qualquer romantismo cinematográfico que esteja em busca de apelo em nível autoajuda.
Este filme mostra algo da realidade de todo professor moderno, que enfrenta a diversidade em sua sala e se vê angustiado na escolha de métodos, artifícios e conteúdos, na tentativa de acrescentar e mudar a realidade da sociedade para melhor. Para nós, o desafio é transpor os muros da linguagem dos alunos, depois dos preconceitos e deformações psicológicas familiares e depois da administração e projetos pedagógicos aleijados das escolas. Escolas de onde os professores são agentes reprodutores e não transformadores, o que irá se repetir nas ações dos que estão sendo formados, perpetuando os erros da sociedade de hoje e fertilizando os novos do amanhã. 


Enquanto isso, uns ou outros herois, que fazem e acreditam na transformação de modo crítico, continuam nas salas de aula com suas vozes cada vez mais roucas, suas contas bancárias cada vez mais parvas e sua esperança cada vez mais escassa.

Um feliz dia dos professores a nós, entre os muros do Brasil.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Blackbird: into the light *

A minha vida vale todas as coisas que me inspiram a buscar tudo o que eu ainda não sou, mesmo que nunca venha a ser.

Blackbird é um poema escrito por Paul McCartney, meu beatle favorito declaradamente. Digo que é um poema porque se há algo que aprendi nesses quase 23 anos é a reconhecer a poesia nas coisas que a contém. Nessa letra há tanto poema quanto música. Além de tanto manifesto a ser seguido por todos nós que buscamos o nosso voo, a nossa liberdade, que é a própria busca.

Essa canção foi lançada em 1968, em um dos álbuns mais adorados dos Beatles: "The Beatles" ou o "White Album". Nessa época, a música deles tinha atingido um grau de maturidade suficiente para muitos já saberem que sua obra seria imortal e clássica. 
Sobre sua composição e motivação, há algumas especulações. A letra fala sobre um pássaro negro, um melro, que enfim estava livre para cantar. Nessa ocasião, havia acontecido o assassinato do ativista americano Martin Luther King, e o termo "blackbird" sempre foi usado para se referir a pessoas de origem africana, desde os tempos do tráfico de escravos. Paul declarou que a música não foi escrita para um melro, foi mesmo inspirada numa música de Bach que aprendeu na adolescência. Disse que estava sim, em parte, pensando na situação da luta racial nos EUA.
A metáfora da prisão com a imagem de pássaros na gaiola é bem simples. Simples? Pois as poesias mais lindas que já li em toda minha vida falam do tesouro prosaico invisível aos olhos dos mortais. A metáfora da libertação dos pássaros com a sua saída de gaiolas é diluída na nossa cultura. Mas nesses pouco mais de dois minutos de canção, fica claro que não há imagem esgotada para os olhos de um verdadeiro artista.

Pensando em canção e liberdade, lembro o verso de Hilda em "Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé" que diz: canção e liberdade não se aprendem. Nós todos somos pássaros negros e nascemos com eles dentro de nós. Latente e eterno é o poder de sermos livres e de nos livrarmos de qualquer amarra cruel, assim como me diz essa obra fantástica de Magritte:

(Les affinités électives - René Magritte - 1933)

Somos colocados em gaiolas desde a nossa geração e gestação, quando nos ventres de nossas mães somos posse de seus corpos. Depois, passamos a pertencer a seus desejos, instintos e vaidades. E quando nos permitem andar pelo mundo, saímos de casa para a gaiola da nossa comunidade, dos que esperam sempre algo de nós.
No livro que tenho sobre as histórias das canções dos Beatles, Steve Turner diz: "Paul gosta de citar 'Blackbird' como prova de que suas melhores canções vêm espontâneamente, quando letra e música transbordam como se surgissem sem nenhum esforço consciente da parte dele".

Narcisista que sou, devo venerar Paul porque me sinto como Paul. Amo tudo o que vem de mim sem nenhum esforço. Como o pássaro preto que vou me tornando naturalmente aos poucos, quebrando a casca do ovo, os aços da gaiola, a força da gravidade e o silêncio com as lindas canções que só os pássaros podem cantar. "You were only wainting for this moment to be free".

Tradução de "Blackbird" por Carlos Drummond aqui. Créditos a Guilherme Gatis.

*A você, por fazer parte de todo e qualquer movimento meu de canção e liberdade.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Quixotesca

Sempre achei a escrita algo fascinante, desde a minha mais remota infância. Lembro que tudo envolvido nesse ato me interessava demais, inclusive os acessórios, supérfluos ou não. Papeis coloridos, canetinhas coloridas, pautas azuis ou pretas, papeis de carta, agendas... Em geral, esses materiais palpáveis eram indissociáveis do ato não somente da escrita, mas também da leitura. 
Esse gosto misterioso foi ganhando mais forma ano a ano, enquanto eu tomava forma de gente. Gostava das aulas de redação; e suspeito que muito mais pela oportunidade que tinha de preencher as atividades do livro e aquelas folhas de texto do que propriamente do estudo formal da coisa. Eu gostava mesmo era de fazer.
Hoje em dia, depois de uma graduação inteira, depois de ter passado por períodos de engodo agonizante da minha própria escrita, por ter que encará-la de forma racional e lúcida, depois de nunca mais ter a agenda livre, sem uma pendência de escrita sequer, me pego pensando sobre minha verdadeira relação com esse processo.
Ensino as pessoas a escreverem, acreditando no meu mais profundo que isso não é completamente possível. Estudo a escrita de modo quase religioso. Sim, porque o meu não saber atinge margens tão grandes que só posso continuar a fazer isso dependendo da minha fé cega, de um dia conseguir fazer uma afirmação categórica e completamente segura.

Escrever já foi para mim a fuga dos românticos, o gofo dos desesperados, os ensaios dos estudiosos...

Hoje, me pego aqui em frente a uma tela, sempre, sem nenhum papel colorido, sem rabiscos de versos em coletivos, sem canetinhas coloridas. Surpreendo-me a mim mesma sem saber o que é e o que escrever. Afinal, escrever é sempre quando se tem algo a dizer? Pois tantos já disseram por mim.

E passo os meus dias futuros apenas desaprendendo a escrever o que eu sempre achei que soube. Meus moinhos de vento erguem folhas de papel em branco e minha lança em forma de lápis nunca os alcança, como num quadro que eu vi.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Le Cafè

A minha relação com o café começou como - acredito - começam a de todos nós.

Nossas mães alimentam aquela garrafa térmica que trabalha o dia todo.
- Mãe, vamos para a praça!
- Quando eu terminar o cafezinho!

O café era um de meus maiores rivais. Não gosto de café, não quero saber de café.

Então, quando a vida adulta começa a bater à porta com a necessidade de varar noites lendo textos e escrevendo trabalhos, ele se desfaz de sua fantasia de vilão e veste a da salvação; meu maior companheiro de noites não dormidas. Leu comigo Sófocles, Aristóteles, Octavio Paz, Caminha e toda a grade do curso de Letras.
Depois disso, de manhã ele não pôde faltar. Para aguentar a rotina de fim de graduação, com estágios e dias de 18h úteis. Na hora do almoço também era essencial, para aguentar o pique da tarde sem o cochilo e sem perder a concentração. Hoje, virou quase um fetiche.
Com as grandes e saborosas marcas e tipos de grãos; com as possibilidades de mistura nos capuccinos, frappes, moccas, aromatizados, gelatos!
O café virou o programa do domingo à noite; é o agregador, o personagem principal da peça a
que amigos assistem ao redor de uma mesa.
Ele é presente de páscoa, de aniversário, de namorados.
Ele é um quadro no meu quarto.


Ele é o desejo da manhã, da tarde e da noite.

O café é a paixão mais misteriosa que tive até hoje.


E as lojas do Delta são minha roda gigante, no parquinho do delicioso bairro do Recife.

terça-feira, 22 de junho de 2010

O cacto

Estava lá, o mínimo mimoso mimo que recebeu.

A planta parecia inadequada para quem quer apresentar gentilezas, mas ele dizia: "- Os cactos são fortes. Eles têm espinhos, que os protegem do sol e da transpiração, afugentam os animais sedentos no deserto. A beleza deles está justamente em sua rudeza".
Achava estranho todo aquele discurso, sempre havia pensado que as flores deveriam representar delicadeza, antes gerânios amarelos, Santa Bárbara, mas que jeito estranho de gostar.
Colocou as duas miniaturas da planta que recebera como símbolo de amor na janela de seu quarto. Deve levar bastante sol esse negócio, se ele vive no deserto. E quase nunca colocava água. Os manteve ali mesmo só por polidez, para que se ele perguntasse, ela os pudesse mostrar.
A verdade é que os achava horríveis, quem mal gosto me presentear com uma planta feia dessas.
Preferia umas rosas que murchassem na semana seguinte, mas que deixassem seu cheiro bom pela casa.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Para esquecer a linguística, Claudel.

E chega de linguística! Estou me roubando esse tempinho, em que eu devia ler "O Homem na Língua" de Benveniste - pra poder falar mal de Benveniste amanhã na aula - e vou falar de algo que realmente me toca, além dessa coisa de desvendar o invendável da linguagem.
Camille Claudel, escultora do fim do século XIX, amante e aprendiz do conhecidíssimo Rodin, "conquistou" seu entrelugar nas artes por seu talento incrível e desequilíbrio também.
Falo do filme que (aos trancos e barrancos) consegui terminar de ver ontem. Informações técnicas aqui.

Então, como eu dizia, essa mulher viveu junto de Rodin, aquele escultor de "O Pensador" ,obra que já virou até kitch de tanto ser citada. Eu vi coisas de Rodin ao vivo na Pinacoteca de São Paulo, em março do ano passado, e - sem exageros -  pude provar um pouco do que é ver de perto uma obra de arte. Aliás, São Paulo já vale a existência por tudo de arte que podemos ver ali.

Ok, seus pressupostos são do século XIX. Mas que mania a nossa é a de querer que as pessoas do seu tempo não carreguem nada de seu tempo! A "verossimilhança" trazida por músculos, ossos, faces nada barrocos, mas ainda assim ousados, é muito bonito de se ver.


















Auguste Rodin - A Sombra


Aí é que eu nem conhecia Claudel, culpa - será? - desse patriarcalismo corroborado pela insanidade completa dessa artista maravilhosa. Não dizem que todo gênio não tem equilíbrio emocional algum? 
Então fica aqui a dica do filme. A gente precisa mais de arte. E de loucura.


















 Camille Claudel - O Beijo


quarta-feira, 19 de maio de 2010

Ainda sobre liberdade...

Depois que ganhei de presente a minha liberdade, esse tema não me sai da cabeça e da vida.

Agora, por um viés filosófico, falemos de Nietzsche (só escrevi o nome certo porque copiei) e de liberdade, com o Café Filosófico.
Créditos e agradecimentos a Victor Rodrigues, querido amigo que sempre me manda somente coisas extremamente relevantes. 



sábado, 15 de maio de 2010

Constatação

Aquele velhinho na foto, com a pele dobrada, os olhos dobrados, os cabelos brancos, os olhos marejados (provavelmente cataráticos)...
Aquele velho já foi um bebê, já balbuciou as mesmas coisas de todos os outros bebês. Ele já caiu durante uma brincadeira no quintal (naquela época não havia condomínios), ele já teve seu primeiro beijo, sua primeira namorada, sua primeira decepção.
Aquele velhinho já precisou ir à escola, sair para trabalhar, trabalhar para viver. Ele já casou (ou não), já viveu o que é o amor.
Aquele velhinho frágil ali na foto é o meu poeta preferido.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Liberdade para quem?

O que é liberdade? É ir para onde se quer, na hora em que se quer? É botar as malas nas mãos e sair solto pelo mundo, com o peito livre de qualquer um que pudesse prender com cobrança, dependência, saudades?
Ser livre é sinônimo de ser individual?
Pois é o que se propaga nas vozes e nos passos da maioria daqueles que dizem buscar a liberdade neste nosso mundo. A liberdade é viver só, solto.

Descubro aos poucos que a liberdade é criar raízes, prender-se. Por opção e não por falta dela. A liberdade não é poder ir a todos os cantos, por não saber aonde ir. Ela pode significar a permanência, nascer, crescer e morrer no mesmo lugar a vida inteira, porque se ama estar ali, com as mesmas companhias, as que trazem a felicidade.

Soube de um homem que, numa terra estrangeira, optou por ser taxista. Sua paixão era a leitura, ele amava os livros, e essa profissão lhe dava tempo para exercer a sua liberdade de ler mais. Sua casa era tomada por livros, que ele consumia com paixão, plantado naquela cadeira com asas que não eram de cera. Ele era taxista.


Precisamos nos libertar de paradigmas, de lugares-comuns; precisamos assumir nossas fraquezas, nossa incapacidade de compreender todas as coisas em sua totalidade.

Precisamos viver em busca daquilo que nos faz sorrir e ter coragem de levantar aquela bandeira, com nossa cara estampada.

O que buscamos? A liberdade em companhia. Assim como a felicidade, a liberdade só vale a pena se compartilhada.



quinta-feira, 29 de abril de 2010

Crônica desesperada de acadêmica tresloucada

Adendo: Este é um texto SUBJETIVO, como aqueles que não podemos escrever na academia.

O que é língua, linguística, linguística geral, aplicada, histórica, diacrônica...? céus! Qualquer coisa que você responda pode ser rechaçada de alguma forma, por alguma corrente teórica, filosófica agh. E queira Deus que você escolha a preferida do professor que lhe perguntou.
Quem sou eu? Só vou poder escrever algo decente quando estiver a par de todos os ruídos acadêmicos sobre todos os conceitos acadêmicos? O que eu faço enquanto isso nos Congressos dos quais tenho que participar obrigatoriamente? (para continuar sendo remunerada maravilhosamente pelos órgãos do governo que nos pagam para fazer este mundo menos torpe e estagnado)

O caráter transitório do conhecimento e da ciência é consenso entre os coerentes, é presente nos discursos de todos os que possuem seus títulos universitários. Apesar disso, o que se vê em seus procedimentos, modos de tratar os assuntos e, sobretudo, os alunos, é que o conhecimento pode ser detido, fotografado, esgotado. Escopo?
Assim como o rio do meu último texto, todos os temas acadêmicos possuem milhares de transversalidades tanto disciplinares quanto interdisciplinares com outros. Como algum ser humano pode se sentir capaz de esgotar um tema desses se ignora tantos desses vieses que o tangem?


De uma hora para outra, se perde a segurança até de citar algum autor - quem sabe ele já não estará fora de moda entre os professores doutores cooperativistas provincianos da sua universidade? Who knows?

Eu espero um dia voltar a escrever um texto acadêmico como os meus primeiros: que suscite menos respostas e mais perguntas.
A academia, para as ciências humanas, serve para fazermos sempre melhores perguntas do que as de antes, que atendam à fome do nosso tempo, não para responder caquéticas interrogações que só têm a ver com quem quer manter o conhecimento num ostracismo muito conveniente. Para eles, óbvio.

Sinceros desabafos,

Ana Bolena.


segunda-feira, 19 de abril de 2010

Influentes

Se os afluentes são metáforas da natureza para os braços das gentes, o alcance de cada um deles oscila com a extensão do rio que lhes dá origem.
O toque em cada coisa deságua na alma dos que têm alma; as veias são como os caminhos de areia, visgo de fiozinhos d'água limpa ou suja, do capibaribe - capiberibe -, abaeté, tietê, iguapé,,,,,,, Os rios de hoje, e os toques dos afluentes - o que será deles, meu Deus?


A geografia do corpo é inteligente. O corpo que tem geografia, matemática, biologia, química, física, história, geometria, língua dos dedos, vazam correntes - pra fora, pra dentro - e quanto mais largo o afluente, mais água vai-e-vem, água boa?


A água é boa condutora; leva a alma para os dedos e o mundo para dentro.
A água do rio é outra a cada instante, mas o rio é o mesmo.

Eu rio, tu ris, ele ri, nós rimos. Deles, riem. De rien.


domingo, 4 de abril de 2010

Gelatina

Les Affinités électives, René Magritte, 1933
 





Eu tenho corações fora do peito
Espalhados pelas partes do mundo
Meus pedaços de peito, espelhados

Eu tenho um coração bem aqui
Cravado no peito, batendo na palma da mão

Eu tenho versos livres nas mãos
Saindo da gaiola
Passeando lá fora
A água sempre escapa
Ente os dedos da nossa mão



No meu peito, balas de canhão
Atirando lá, cá, ali, longe
O meu próprio peito
Vazias minhas mãos                                                                     

Quantos corações fora do peito
Vale a palavra liberdade?
Saudade

Eu que não quero esquecer
No meio do caminho
O meu caminho
O meu coração

terça-feira, 23 de março de 2010

Branco

meu verso avesso corre até o reverso
eu te pergunto o que é que eu peço

antes que eu me despeça
ou que você me desconheça
traga nas mãos, nos dedos, na cabeça:

um lindo buquê de palavras
uma noite que nunca amanheça

sábado, 6 de março de 2010

Ó(s)culo

Ganhei um par de óculos, com apenas um óculo, porque, sem saber, já tinha o outro lado desde sempre guardado no ombro. Juntei as duas partes, colei por enquanto com fita adesiva, depois cola-se com cola Tempo.
 
No meu óculo novo há um desenho colorido, uma estampa, um carimbo.
Acontece assim: em tudo pra onde eu olho, em um dos meus olhos, está aquele desenho, fazendo uma composição do tipo background com a paisagem. O óculo, a arte do acaso e o mundo.
E eu olho as coisas, os objetos, as roupas, as músicas (sim, a música também se vê) e tudo agora é isso mais aquilo.
No meu melhor mundo, no meu óculo e nos meus ósculos, em tudo o quanto eu queira olhar, uma silhueta me acompanha.
Só se pode enxergar bem com os dois olhos abertos. E com os dois óculos no rosto. E com todos os ósculos na boca.


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

E a alma dói no texto

A escrita dói em cada um que sente quando escreve. Dói em mim, dói nela, neles, dói nos meus alunos que me imploram,  "tia, não gosto de escrever", e tenho vontade de responder "também não gosto não, meus amores, mas a gente precisa, mesmo que doa". Não digo isso, porque eles me achariam louca.
Sei alguns motivos pelos quais a gente sente navalha na carne quando caneta vai no papel. Escrever é vômito, é deixar sair de dentro as entranhas, escapam as estranhas nuances da gente mesmo, que a gente sabe ou não sabe - mas a gente sempre sabe da gente, sem saber.

Me disseram pra ensinar as crianças a escrever. Eu ensino a doer. Malu disse: - Não consigo, não consigo!, e minha vontade era dizer assim "Não escreva não, menina". Não sei se quero ensinar a doer.

Hoje em dia, escrever continua doendo na minha alma. Mostrar as coisas escritas também, mas faço isso aqui como um exercício de execração pública, assim como fez aquele Cara há dois mil anos. Mesmo que a mim só as paredes ouçam, neste quarto os males saem, doem, e faço isso porque só posso gostar da dor, porque tudo acaba um dia, as pessoas acabam, as coisas acabam e escrever não acaba. Doer não acaba mais.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Intermitência

Ao espaço vazio entre dois corpos.


A multidão é a contramão do ínterim. É a contrapartida do vácuo de que nasce a saudável solidão, que fomenta o pensamento, o dilaceramento de ideias, conjecturas.
A conflituosa necessidade de intervalos permite as solidificações - uma construção necessita que sequem os concretos, cimentos, rebocos, pós de areia transformados em paredes, depois quartos, salas, enfim os lares. Seca chão, corrediça, porta, teto. Sequem em seu tempo de secar. Obras atrasam. Prazos são previsões ilusórias.
A saudade é a certeza de que a partida é necessária. A hora da partida alimenta a saudade. A hora da partida é a certeza.

"Somos pó de estrelas, somos todos restos de estrelas", disse a cigana. Somos estrelas que morreram para que pudéssemos ser. O que as estrelas diriam se nos vissem hoje? 


No chão do mundo, infinidade de confetes fingindo areia de praia, grãos coloridos de saudade, intervalos, certezas. A saudade é a certeza, é a criança que diz - não! - e quer dizer não. Ou não.

Chocam-se os copos em nome dos corpos.  Tim-tim! Tocam-se os corpos em nome dos copos corpos copos cópulas corpulentos milímetros de intermitências gritando feito multidão. Pulando coloridos pedaços de saudade, areia cheia de cor, corpo, confetes, sargaço, serpentinas, repentinos copos chocando-se no pedaço infinito de saudade, os corpos respirando o espaço entre corpos.

No princípio, era o verso - que nasce antes do verbo.       

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Fados Carnavalescos

Relações que começam e que terminam no carnaval são o tema de uma matéria que uma conhecida vai fazer. 
Ela disse: - Se conhecer alguém que começou a namorar ou terminou o namoro neste carnaval, me avisa.

Respondi que minha vontade era não apresentar ninguém que se encaixasse no segundo caso; imagino sempre que terminar coisas - relações de qualquer natureza, sobretudo - destoa de carnaval, que é tempo de celebrar. 

Oficialmente, o carnaval começa no sábado, o Sábado de Zé Pereira. O Sábado de Zé Pereira começou a ser chamado assim ainda no Brasil Colônia, quando grupos de portugueses saíam às ruas tocando grandes tambores e anuciando o começo do Carnaval. Esse grupos ficaram conhecidos como Zés Pereiras, segundo a informação do Acerto de Contas.
Extra-oficialmente (isso ainda tem hífem?), sabemos que, em Recife/Olinda, o carnaval começa bem antes disso. Pelos idos de dezembro, já podemos ir para as prévias nas ladeiras olindenses, cheias de gente feliz, com o espírito livre de folião prematuro. Não há palavra que mais combine com carnaval do que liberdade.
A oficialização das datas e nomes para referências é mesmo importante para que se estabeleçam parâmetros, que se ordenem os fatos (sumidiços fatos datas o tempo envolto em visgo), que se marquem os compromissos, se agendem os eventos. No sábado de Zé Pereira, por exemplo, sai o Galo da Madrugada em Recife; os vários blocos em Olinda; tem também show sagrado de sábado de Lenine. É no sábado que se pensa, "enfim, é carnaval".

Um amigo tem uma interessante superstição (levo sempre uma hora para conseguir escrever essa palavra corretamente) de que o que acontece no primeiro dia do ano está marcado para acontecer o ano inteiro. É uma ingênua crença, é claro, como todas as outras, que dependem da fé do supersticioso para vingar ou não.
Mas... não foi mesmo Deus que disse em algum lugar que a fé move Montanhas?

O que acontece no primeiro dia de carnaval acontece também o ano todo. 
Isso não foi Deus quem disse não.
E tenho fé.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

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Para Hilda


bemequer malmequer bemequer malmequer bemequer malmequer
por que não tiraram o hífem do bemequer? dava até pra economizar uma letra!
não faz sentido bem-me-quer malmequer se separa bem me quer não separa malmequer
malmequer deve ser uma palavra só, né?, porque quando querem mal querem mais do que quando querem bem aí bem-me-quer fica assim com três palavras mas pra quê serve o hífen mesmo?
os alemães juntam tudo, pra eles deve ser mais simples bemquerer ou malquerer tudojunto sempre
e não é que eles sabem das coisas?


bemequer malmequer bemequer malmequer

você já fez malmequer com alguma flor?
não fiz, fizeram pra mim.
e deu certo?
sim, deu certo, deu errado, deu malmequer e deu mesmo errado

bemequer malmequer bemequer malmequer bemequer

o resultado dura para sempre?
não sei, comigo durou, continua dando certo, errado tudo errado
quem será que pensou em perguntar às flores sobre o amor?
não sei, deve ser alguém inteligente. as flores parecem saber muito mais sobre o amor do que eu, por exemplo, que não sei o que é o amor nem sei o que é amar só sei fazer perguntas perguntas não sei responder perguntas e me fazem perguntas o que é amar?

malmequer bemequer malmequer bemequer

me disseram que o amor é uma coisa individual, assim que a gente descobre sozinho, sabe, que não depende do outro nem dos outros mas por que todo mundo casa e quer viver feliz para sempre então?
eu acho que as pessoas não sabem o que querem ou sabem o que querem e sabem que não vão conseguir nunca aí arrumam explicações boas para quando não conseguirem não ficarem tão tristes
ah, faz sentido mesmo
todas essas canções e livros e filmes tentam responder à mesma coisa sempre o que é o amor?
mentira, tem gente que não fala de amor, tem música que fala das pessoas
as pessoas procuram o amor elas não sabem o que procuram eu não sei o que eu procuro o que é amor?

malmequer bemequer malmequer bemequer malmequer bemequer

bemequer! vai funcionar?
não sei, acho que só funciona a primeira vez, depois não vale mais, a minha foi malmequer
mas você tem sete vidas, essa é sua segunda vida
não sou pobre nem sou livre nem tenho respostas tenho apenas uma vida já vivi
e agora você morreu?
de certa forma sim, né, sabe como é eu sou outra pessoa
então você tem outra vida se é outra pessoa
se eu tivesse outra vida, não lembraria da passada. é assim que Deus faz com os espíritos ninguém lembra da vida passada senão atrapalha a próxima vida, ele sabe o que faz, onisciente, onipotente, onipresente, porisso dá certo e eu não morri de verdade

o que é a morte? o que é o amor? malmequer bemequer com ou sem hífen?

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

É saudade


Estás ausente.
Mas há no amor
como que eterna
sobrevivência.
É como a rosa
que não se corta
e nem se colhe
pela manhã.

Estás ausente.

Mas este amor
é bem aquele
feito de estrelas
que persistiram
até que o dia
se aproximasse.

Estás ausente.
Vivo e perene
nestes abismos
do pensamento.

Hilda Hilst



Boa tarde. Hoje eu quero escrever livremente sobre as saudades que alimentam meu peito e meu peito alimenta, assim sem formulação de teses, sem seleção de argumentos, sem parágrafos, sem revisão sem nada. Hoje eu quero ser aqui bem pessoal, em primeira pessoa, e me arriscar, e me mostrar pra quem quiser ver mesmo, porque, afinal, o que é este mundo virtual e real não mais do que uma enorme vitrine? Queria até mesmo escrever sem pontuação nenhuma, mas eu não sou ainda Saramago nem Hilda Hilst e sou corretora e me dá agonia ver vírgulas fora do lugar que os gramáticos guardaram para elas. Sim, eu adoro regras e ditaduras, elas organizam minha vida e não seria capaz de fazer isso sozinha. Hoje recebi um email de Raquel Lasálvia, amiga minha que está morando na Espanha desde a metade do ano passado e até a metade desse ano, assim como Mirela está em Lyon. Ela me mandou um presente, desses presentes imateriais que eu gosto mais do que qualquer perfume caríssimo (e eu gosto muito dos perfumes). Ela me mandou uma música de Mayra Andrade, uma cantora africana de língua francófona. Muito bonita a música, se chamava "Mon Carrousel", em português presumam "Meu Carrossel", e ela destacou um trecho muito lindo que, sem ela saber, tem tanto a ver com meu momento de vida atual. Isso de alguém no outro lado do oceano pensar em mim, me mandar uma música que me lembrou... isso de ter gente ligada por fios invisíveis e muito extensos, essa coisa me emociona muito, me deixa marejada, sobe muito o meu ego. Eu gosto dessa ligação intensa entre mim e os meus, me sinto melhor do que os animais e os irracionais. Isso reafirma minha humanidade e sensibilidade. Eu disse a uma pessoa muito especial numa conversa que estava com saudades dela porque, sobretudo, eu já tinha nascido com saudades. Eu tenho mesmo essa sensação e que a história da minha vida foi/está sendo desenhada com pinceladas de saudades em todos os atos e cenas. Eu sempre estou com muita saudade de algo ou de alguém e isso não se dá de forma apenas psicológica, mas sim física. Há sempre alguém muito amado longe, que me faz sentir essa dor enorme que Chico traduziu tão bem na música mais triste do mundo, segundo um homem que conheci num bar na última terça-feira, numa roda de violão. Ele disse "- Sabe qual é a música mais triste do mundo?", quando alguém tocava Chico na mesma hora e eu disse no ato "Pedaço de Mim". Ele apertou a minha mão. Não existe música mais triste no mundo e ela fala da saudade, "A saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu". Acho que por isso eu sinto sempre um pouquinho de vazio dentro de mim, espaços desocupados, são os meus pedaços que não estão perto. E por mais que outros pedaços me componham e me acompanhem, é como se meu corpo fosse um quebra-cabeças e nele cada peça só se encaixa no seu devido lugar. O marido espanhol da minha prima me perguntou quando eu ia pra Europa para estudar e eu disse logo: eu não vou. Não que eu não tenha vontade de conhecer uma cultura com status de civilizada, nem uma organização social decente, sem essa violência escrota recifense. Não que eu não tenha vontade de melhorar meu francês, espanhol, inglês. Eu tenho sim tudo isso, mas tenho mais dor quando lembro que vou ter que ficar longe dos meus amados. Que a gente se afasta na vida é um pouco inevitável, eu sei, como nesse momento que vários amados estão longe. Mas, sabe, eu não quero ser responsável pela dor que EU SEI que vou sentir, eu não quero sair procurando a dor. Eu quero passear e voltar, pro colo e aconchego dos amores dos meus. Saudade só é coisa boa quando você não tem um oceano separando você e ela. Entendo muito o que Fernando Pessoa diz em "Mensagem" quando escreve "Oh, Mar salgado/ Quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal". É a saudade. Eu dedico essa baboseira caótica e sem progressão, mas cheia de verdade, aos meus amigos que estão longe de mim nesse exato momento, mas quem eu sinto sempre próximos pelo grande amor que lhes tenho. Nicole, Mirela, Raquel e até Marconi, que ainda irá, mas de quem já sinto uma feroz saudade, de Victor, de Clarissa, de Riffa, de Gabi. De Danielle Beckman, meu Deus, como sinto falta. Mesmo daqueles que nunca estiveram exatamente perto. É saudade. Nunca vi ninguém sentir saudade de algo que não ama de verdade, então, é isso.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Endogenia


"O inferno são os outros", disse Sartre.
"O paraíso são os outros", disse eu.

Óbvia, científica e empiricamente, Sartre tem muito mais chances de estar certo. Mas o que importa? Filosofia não se parece um pouco com religião? E religião não é quase somente fé?






Imagem
Fonte: exposição francófona 2009 Centro de Artes e Comunicação - UFPE
Foto: Marilia Ramos

sábado, 16 de janeiro de 2010

E já chegou o carnaval?

Quem não se comunica, se trumbica; já diria Saussure.

Márcio Rodrigues

Minha carne é de carnaval, meu coração é igual

Novos Baianos


É uníssono o discurso daqueles que já conhecem o cíclico calendário brasileiro de festividades. No primeiro dia do ano, invadem logo as nossas casas, naqueles quadrados luminosos, as propagandas coloridas, chamando o povo de fora para o carnaval daqui. E o ano só começa mesmo depois do último dia da semana mais aguardada do ano.

E os comerciantes, ainda com seus pinheiros montados, enfeitados com algodão e bolinhas cintilantes, começam a trocar às pressas a decoração que nos lembra os cantos frios por lantejoulas, paetês, fantasias. Nas ruas do comércio popular recifense, em janeiro, já se pode enxergar e respirar nitidamente o espírito que contamina toda a cidade uma vez por ano: é carnaval! Para quem estava se guardando para quando o carnaval chegasse, como Chico outrora cantou (informe-se), o sentimento é de susto. - Já é a hora de sair?

Carnaval é quando se pode pecar sem pecado, é quando não há o amanhã de se trabalhar, é quando não existe a hora de dormir. Nunca se deve adoecer no carnaval, diz um dos mandamentos. Há também os sujeitos cheios de pânico de iniciar relações amorosas por essa época. Carnaval, para esses, é tempo de trocar saliva com ao menos metade da cidade, é tempo de por em xeque o poder de seus sistemas imunológicos.

As fantasias expostas nas vitrines assinalam os horizontes lúdicos que se abrem agora a essas velhas jovens crianças. Aquelas que não podem mais ser Pierrots nem Colombinas; se ocupam correndo muito para se fantasiar de médicos, professores, enfermeiros. Nos quatro dias amorais do ano, surgem diabinhos e anjinhos, personagens de desenhos animados - uns não tão animados, mas bastante sugestivos e intencionados.

As crianças exiladas de seus sonhos podem enfim brincar novamente. Durante quatro dias, subindo e descendo, bebendo, pulando, suando, os corações balbuciam  numa Babel perecível. Parece que, depois de tudo, as memórias são atacadas por síncopes coletivas e reiniciam suas atividades, fazendo desaparecer o que houver de ser esquecido. Para os que estão longe, o carnaval deve ser a dor. Eles não poderão ser, ao menos uma vez por ano, aqueles que realmente gostariam. E depois esquecer tudo.

Todas aquelas cores e enfeites nas lojas, que ninguém jamais usaria em condições diversas, são um pouquinho de coragem que se consigna para compor as verdadeiras máscaras de cada um. A fantasia, na verdade, é justo a face verdadeira de quem a veste. Porque, no carnaval, tudo é permitido. Até sair de si mesmo. O carnaval é o intervalo entre os dois grandes atos em que é dividido o drama da existência anual. Nesse ínterim, tudo é comédia e arte, Dellarte (informe-se).

Esperei em 2009 ansiosamente o intervalo de uma peça shakespeareana. Sófocles deu o ar da graça sem ser convidado, acabou-se o carnaval. Lá se foi minha chance de ser eu mesma, com os cem anos de perdão de quem rouba a felicidade e pode esquecer todos os males da humanidade. Uma vez por ano. Aprendi com isso a não esperar mais nada, nem o carnaval.



Então o carnaval me apareceu de supetão, invadiu meus olhos em forma de rua velha cheia em dia de semana, vitrines, fantasias; assonou a vida com os frevos dos carrinhos ilícitos. Lembrei-me que não usei de fato nenhuma das duas fantasias que fiz e comprei em 2009. Estão aqui, intactas, imexíveis, esperando a hora de mostrar minha máscara ao mundo.

Dessa vez, parece que a dançarina de cabaré vai dançar as polcas a que tem direito. E a Colombina vai sair por aí sem triângulos e Arlequim.
Como aprendi muito bem, eu nem espero mais. Também nem precisa, o carnaval já começou. E estamos nós aqui, fantasiados e cantando. Não me diga mais quem é você (informe-se).

sábado, 9 de janeiro de 2010

A dignidade do silêncio e o benefício da dúvida

À liberdade


Muito me marcou o título que uma vez me deu um dos meus melhores e mais próximos amigos, cuja opinião levo severamente em consideração. Ele disse: - És a menina das justificativas.

Disse isso com toda razão, tendo em vista que ele nunca fala nada deliberadamente, sem ao menos antes refletir sobre. E ele sabia que eu era assim: eu vivia me justificando o tempo todo para as pessoas, explicando sempre didaticamente todos os motivos por eu ter feito ou não algo.
Foi como ter me olhado num espelho nítido pela primeira vez. Eu já desconfiava que era assim, mas quando a percepção de outra pessoa traduz tão bem o seu comportamento, parece que finalmente se desenha com linhas claras o que você pensava. Eu era assim. Ainda sou, de alguma forma.

O caso é que a observação de Marconi Madruga deu início a uma cirurgia lenta que vem mostrando seus primeiros resultados positivos gradativamente. Tento não me explicar tanto. Se não posso comparecer a algum evento, explico de modo mais suscinto, para que as pessoas não se sintam tão potentes diante das minhas trajetórias. Afinal, sou eu dona dos meus próprios passos, não?
O problema encerra uma relação transversal com a minha eterna dificuldade de dizer não. "- Vamos para tal lugar?". "- Não, não estou com vontade". Trivial?
Não tão simples assim. Isso porque as pessoas do mundo, em geral, não estão ainda preparadas para reconhecer os limites das outras sem senti-los como uma afronta direta. Para ser mais clara: se alguém não quer ver você em um dia, por exemplo, isso não quer dizer que aquela pessoa não goste da sua companhia. Ela pode simplesmente estar em um dia não tão bom, ou seu humor não estar propício a interações.

Compreender os limites dos outros (que podem ser muito distintos em relação aos seus) é um desafio tão grande quanto aprender a dizer não de modo educado ou permanecer em silêncio.

O silêncio às vezes é a melhor opção para responder certas coisas para as quais não haja apenas uma resposta ou talvez não a mereçam, de tão absurdas. Há pessoas com limitações, que jamais entenderiam (ou sentiriam, para dizer melhor) determinados percepção e ponto vista. Para estas, reserva-se o vácuo. Saber fazer silêncio quando ele é necessário é outro aprendizado extremamente árduo, mas se consegue.

E o silêncio é capaz de proporcionar o valioso benefício da dúvida. Não se deve abrir mão do conforto de continuar acreditando no que se quer e naquilo que mais convém. Não se deve perguntar algo para o qual não se esteja preparado para todas as possibilidades de resposta.
Não vamos parar de acreditar nas nossas confortantes verdades. Não façamos perguntas. Não nos justifiquemos.


Não queremos perder a grande oportunidade de dizer nada.

Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh....