quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

É saudade


Estás ausente.
Mas há no amor
como que eterna
sobrevivência.
É como a rosa
que não se corta
e nem se colhe
pela manhã.

Estás ausente.

Mas este amor
é bem aquele
feito de estrelas
que persistiram
até que o dia
se aproximasse.

Estás ausente.
Vivo e perene
nestes abismos
do pensamento.

Hilda Hilst



Boa tarde. Hoje eu quero escrever livremente sobre as saudades que alimentam meu peito e meu peito alimenta, assim sem formulação de teses, sem seleção de argumentos, sem parágrafos, sem revisão sem nada. Hoje eu quero ser aqui bem pessoal, em primeira pessoa, e me arriscar, e me mostrar pra quem quiser ver mesmo, porque, afinal, o que é este mundo virtual e real não mais do que uma enorme vitrine? Queria até mesmo escrever sem pontuação nenhuma, mas eu não sou ainda Saramago nem Hilda Hilst e sou corretora e me dá agonia ver vírgulas fora do lugar que os gramáticos guardaram para elas. Sim, eu adoro regras e ditaduras, elas organizam minha vida e não seria capaz de fazer isso sozinha. Hoje recebi um email de Raquel Lasálvia, amiga minha que está morando na Espanha desde a metade do ano passado e até a metade desse ano, assim como Mirela está em Lyon. Ela me mandou um presente, desses presentes imateriais que eu gosto mais do que qualquer perfume caríssimo (e eu gosto muito dos perfumes). Ela me mandou uma música de Mayra Andrade, uma cantora africana de língua francófona. Muito bonita a música, se chamava "Mon Carrousel", em português presumam "Meu Carrossel", e ela destacou um trecho muito lindo que, sem ela saber, tem tanto a ver com meu momento de vida atual. Isso de alguém no outro lado do oceano pensar em mim, me mandar uma música que me lembrou... isso de ter gente ligada por fios invisíveis e muito extensos, essa coisa me emociona muito, me deixa marejada, sobe muito o meu ego. Eu gosto dessa ligação intensa entre mim e os meus, me sinto melhor do que os animais e os irracionais. Isso reafirma minha humanidade e sensibilidade. Eu disse a uma pessoa muito especial numa conversa que estava com saudades dela porque, sobretudo, eu já tinha nascido com saudades. Eu tenho mesmo essa sensação e que a história da minha vida foi/está sendo desenhada com pinceladas de saudades em todos os atos e cenas. Eu sempre estou com muita saudade de algo ou de alguém e isso não se dá de forma apenas psicológica, mas sim física. Há sempre alguém muito amado longe, que me faz sentir essa dor enorme que Chico traduziu tão bem na música mais triste do mundo, segundo um homem que conheci num bar na última terça-feira, numa roda de violão. Ele disse "- Sabe qual é a música mais triste do mundo?", quando alguém tocava Chico na mesma hora e eu disse no ato "Pedaço de Mim". Ele apertou a minha mão. Não existe música mais triste no mundo e ela fala da saudade, "A saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu". Acho que por isso eu sinto sempre um pouquinho de vazio dentro de mim, espaços desocupados, são os meus pedaços que não estão perto. E por mais que outros pedaços me componham e me acompanhem, é como se meu corpo fosse um quebra-cabeças e nele cada peça só se encaixa no seu devido lugar. O marido espanhol da minha prima me perguntou quando eu ia pra Europa para estudar e eu disse logo: eu não vou. Não que eu não tenha vontade de conhecer uma cultura com status de civilizada, nem uma organização social decente, sem essa violência escrota recifense. Não que eu não tenha vontade de melhorar meu francês, espanhol, inglês. Eu tenho sim tudo isso, mas tenho mais dor quando lembro que vou ter que ficar longe dos meus amados. Que a gente se afasta na vida é um pouco inevitável, eu sei, como nesse momento que vários amados estão longe. Mas, sabe, eu não quero ser responsável pela dor que EU SEI que vou sentir, eu não quero sair procurando a dor. Eu quero passear e voltar, pro colo e aconchego dos amores dos meus. Saudade só é coisa boa quando você não tem um oceano separando você e ela. Entendo muito o que Fernando Pessoa diz em "Mensagem" quando escreve "Oh, Mar salgado/ Quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal". É a saudade. Eu dedico essa baboseira caótica e sem progressão, mas cheia de verdade, aos meus amigos que estão longe de mim nesse exato momento, mas quem eu sinto sempre próximos pelo grande amor que lhes tenho. Nicole, Mirela, Raquel e até Marconi, que ainda irá, mas de quem já sinto uma feroz saudade, de Victor, de Clarissa, de Riffa, de Gabi. De Danielle Beckman, meu Deus, como sinto falta. Mesmo daqueles que nunca estiveram exatamente perto. É saudade. Nunca vi ninguém sentir saudade de algo que não ama de verdade, então, é isso.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Endogenia


"O inferno são os outros", disse Sartre.
"O paraíso são os outros", disse eu.

Óbvia, científica e empiricamente, Sartre tem muito mais chances de estar certo. Mas o que importa? Filosofia não se parece um pouco com religião? E religião não é quase somente fé?






Imagem
Fonte: exposição francófona 2009 Centro de Artes e Comunicação - UFPE
Foto: Marilia Ramos

sábado, 16 de janeiro de 2010

E já chegou o carnaval?

Quem não se comunica, se trumbica; já diria Saussure.

Márcio Rodrigues

Minha carne é de carnaval, meu coração é igual

Novos Baianos


É uníssono o discurso daqueles que já conhecem o cíclico calendário brasileiro de festividades. No primeiro dia do ano, invadem logo as nossas casas, naqueles quadrados luminosos, as propagandas coloridas, chamando o povo de fora para o carnaval daqui. E o ano só começa mesmo depois do último dia da semana mais aguardada do ano.

E os comerciantes, ainda com seus pinheiros montados, enfeitados com algodão e bolinhas cintilantes, começam a trocar às pressas a decoração que nos lembra os cantos frios por lantejoulas, paetês, fantasias. Nas ruas do comércio popular recifense, em janeiro, já se pode enxergar e respirar nitidamente o espírito que contamina toda a cidade uma vez por ano: é carnaval! Para quem estava se guardando para quando o carnaval chegasse, como Chico outrora cantou (informe-se), o sentimento é de susto. - Já é a hora de sair?

Carnaval é quando se pode pecar sem pecado, é quando não há o amanhã de se trabalhar, é quando não existe a hora de dormir. Nunca se deve adoecer no carnaval, diz um dos mandamentos. Há também os sujeitos cheios de pânico de iniciar relações amorosas por essa época. Carnaval, para esses, é tempo de trocar saliva com ao menos metade da cidade, é tempo de por em xeque o poder de seus sistemas imunológicos.

As fantasias expostas nas vitrines assinalam os horizontes lúdicos que se abrem agora a essas velhas jovens crianças. Aquelas que não podem mais ser Pierrots nem Colombinas; se ocupam correndo muito para se fantasiar de médicos, professores, enfermeiros. Nos quatro dias amorais do ano, surgem diabinhos e anjinhos, personagens de desenhos animados - uns não tão animados, mas bastante sugestivos e intencionados.

As crianças exiladas de seus sonhos podem enfim brincar novamente. Durante quatro dias, subindo e descendo, bebendo, pulando, suando, os corações balbuciam  numa Babel perecível. Parece que, depois de tudo, as memórias são atacadas por síncopes coletivas e reiniciam suas atividades, fazendo desaparecer o que houver de ser esquecido. Para os que estão longe, o carnaval deve ser a dor. Eles não poderão ser, ao menos uma vez por ano, aqueles que realmente gostariam. E depois esquecer tudo.

Todas aquelas cores e enfeites nas lojas, que ninguém jamais usaria em condições diversas, são um pouquinho de coragem que se consigna para compor as verdadeiras máscaras de cada um. A fantasia, na verdade, é justo a face verdadeira de quem a veste. Porque, no carnaval, tudo é permitido. Até sair de si mesmo. O carnaval é o intervalo entre os dois grandes atos em que é dividido o drama da existência anual. Nesse ínterim, tudo é comédia e arte, Dellarte (informe-se).

Esperei em 2009 ansiosamente o intervalo de uma peça shakespeareana. Sófocles deu o ar da graça sem ser convidado, acabou-se o carnaval. Lá se foi minha chance de ser eu mesma, com os cem anos de perdão de quem rouba a felicidade e pode esquecer todos os males da humanidade. Uma vez por ano. Aprendi com isso a não esperar mais nada, nem o carnaval.



Então o carnaval me apareceu de supetão, invadiu meus olhos em forma de rua velha cheia em dia de semana, vitrines, fantasias; assonou a vida com os frevos dos carrinhos ilícitos. Lembrei-me que não usei de fato nenhuma das duas fantasias que fiz e comprei em 2009. Estão aqui, intactas, imexíveis, esperando a hora de mostrar minha máscara ao mundo.

Dessa vez, parece que a dançarina de cabaré vai dançar as polcas a que tem direito. E a Colombina vai sair por aí sem triângulos e Arlequim.
Como aprendi muito bem, eu nem espero mais. Também nem precisa, o carnaval já começou. E estamos nós aqui, fantasiados e cantando. Não me diga mais quem é você (informe-se).

sábado, 9 de janeiro de 2010

A dignidade do silêncio e o benefício da dúvida

À liberdade


Muito me marcou o título que uma vez me deu um dos meus melhores e mais próximos amigos, cuja opinião levo severamente em consideração. Ele disse: - És a menina das justificativas.

Disse isso com toda razão, tendo em vista que ele nunca fala nada deliberadamente, sem ao menos antes refletir sobre. E ele sabia que eu era assim: eu vivia me justificando o tempo todo para as pessoas, explicando sempre didaticamente todos os motivos por eu ter feito ou não algo.
Foi como ter me olhado num espelho nítido pela primeira vez. Eu já desconfiava que era assim, mas quando a percepção de outra pessoa traduz tão bem o seu comportamento, parece que finalmente se desenha com linhas claras o que você pensava. Eu era assim. Ainda sou, de alguma forma.

O caso é que a observação de Marconi Madruga deu início a uma cirurgia lenta que vem mostrando seus primeiros resultados positivos gradativamente. Tento não me explicar tanto. Se não posso comparecer a algum evento, explico de modo mais suscinto, para que as pessoas não se sintam tão potentes diante das minhas trajetórias. Afinal, sou eu dona dos meus próprios passos, não?
O problema encerra uma relação transversal com a minha eterna dificuldade de dizer não. "- Vamos para tal lugar?". "- Não, não estou com vontade". Trivial?
Não tão simples assim. Isso porque as pessoas do mundo, em geral, não estão ainda preparadas para reconhecer os limites das outras sem senti-los como uma afronta direta. Para ser mais clara: se alguém não quer ver você em um dia, por exemplo, isso não quer dizer que aquela pessoa não goste da sua companhia. Ela pode simplesmente estar em um dia não tão bom, ou seu humor não estar propício a interações.

Compreender os limites dos outros (que podem ser muito distintos em relação aos seus) é um desafio tão grande quanto aprender a dizer não de modo educado ou permanecer em silêncio.

O silêncio às vezes é a melhor opção para responder certas coisas para as quais não haja apenas uma resposta ou talvez não a mereçam, de tão absurdas. Há pessoas com limitações, que jamais entenderiam (ou sentiriam, para dizer melhor) determinados percepção e ponto vista. Para estas, reserva-se o vácuo. Saber fazer silêncio quando ele é necessário é outro aprendizado extremamente árduo, mas se consegue.

E o silêncio é capaz de proporcionar o valioso benefício da dúvida. Não se deve abrir mão do conforto de continuar acreditando no que se quer e naquilo que mais convém. Não se deve perguntar algo para o qual não se esteja preparado para todas as possibilidades de resposta.
Não vamos parar de acreditar nas nossas confortantes verdades. Não façamos perguntas. Não nos justifiquemos.


Não queremos perder a grande oportunidade de dizer nada.

Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh....