quinta-feira, 16 de junho de 2011

O velho

Na terça-feira, enfrentei uma jornada corajosa. O caminho era longo, engarrafado – e engarrafados estávamos nós naquele coletivo.
Entrei no ônibus com uma mochila cheia de livros nas costas. Precisava trabalhar o dia inteiro nas tarefas pendentes. Eu já sabia que o caminho duraria não menos de uma hora e meia, mas sempre existe esperança de haver justamente um assento vazio, que te receberá aconchegantemente naquele espaço calorento, cheio de vidas ansiosas para pular dali em direção à vida.
Pois bem. Não era nada e o ônibus demorou muito. Sintoma de que deveria vir cheio de gentes. E veio.
Passei pela borboleta sem mais nenhuma expectativa de encontrar meu ninho ali dentro. Muitos estavam em pé, e aquela linha é do tipo que apenas recebe as pessoas no caminho, não deixa ninguém. Conformei-me.
O espaço destinado a cadeirantes estava ocupado e já não era possível sentar na cadeirinha retrátil ali posta. Nem havia prestado atenção em quem estava sentado na cadeira de rodas; tentava me concentrar para me acalmar diante do tempo que ia passar ali, em pé, com uma mochila pesada nas costas às 8 da manhã.
Alguém me tocou.
 – Ei, venha pra cá. Sente-se aqui.
- Não precisa, o cinto não vai funcionar com a cadeira assim e...
O velho já tinha virado a cadeira em outra direção, de modo que eu poderia ocupar o assento retrátil ao lado. Tentei dissuadi-lo, mas confesso que a ideia de sentar naquela hora era tão sedutora quanto a insistência do pobre homem. Enfim, acomodei-me.
E como se me sentisse em dívida com ele – eu que comumente evito os colóquios com estranhos em ônibus -, fui impelida a conversar com aquele homem que mesmo na condição de cadeirante sensibilizou-se e me fez sentar.
O homem cujo nome não sei me disse que tinha 80 anos e cheirava a urina. Percebi depois que ele tinha uma sonda. Olhos azuis, cabelos branquinhos, talvez frágil.
Ele casou-se duas vezes. Com a primeira esposa, teve cinco filhos, com os quais não tem quase ligação. Eles tomaram as dores da mãe depois que o velho a deixou pela atual esposa.
Recebe dois salários de aposentadoria, mora em um segundo andar. Um sujeito doa a ele 100 reais por mês para que ele pague um rapaz que o ajuda a descer as escadas. Ele está procurando um lugar térreo para morar, mas não vai contar nada ao homem não, pra não perder o dinheiro.
A esposa sai para trabalhar. Ele paga alguém para ajudá-lo a tomar banho, mas não é todo dia porque o dinheiro não dá. Então ele não toma banho todos os dias. Ele mesmo faz sua comida. Lava logo cedo todos os pratos. Perguntei se ele sempre saía sozinho – me espantei como um velho aparentemente tão frágil como aquele conseguia ir aos lugares de ônibus sem ninguém. Ele disse que sim, que fazia tudo. Naquele dia estava indo a uma loja que conserta cadeiras de rodas. Mas nas segundas, quartas e sextas sempre vai à Caxangá fazer uma fisioterapia que segundo ele de nada adianta. Ele vai deixar de ir.
Acha bom sair sozinho de ônibus porque não paga passagem. Dos mil e poucos reais que ganha por mês, gasta 600 com despesas de casa. O restante serve para comprar comida e remédios.
Às vezes um dos filhos do outro casamento dele liga e pergunta se ele precisa de alguma coisa. Ele diz que não. Outro leva um dinheirinho para ele e ele aceita, não é?, porque ele precisa.
Pensei então em como deveria ter sido o passado daquele homem senil tão debilitado na sua cadeira de rodas com sua sonda, mas com coragem para sair à rua. Quem era aquele homem? Ele era um rapaz bonito, cercado de belas pretendentes? Ele foi bom pai? Ele foi bom marido?
Essa longa e fatídica viagem me fez pensar no que Bakhtin fala sobre os sujeitos: cada um é único e irrepetível. E isso não se diz apenas de um ser para outro, mas de um ser para ele mesmo. Somos múltiplos e ao mesmo tempo únicos em momentos distintos.
Essa figura senil com cheiro forte de mijo sentada naquela cadeira velha um dia teve uma família. Não sabemos de suas ações, de sua conduta. O que ela nos desperta hoje? O que ela despertou ontem?
O ser é apenas uma condição.