sábado, 28 de novembro de 2009

Poeticidade

"Mas a nós (...) só resta trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente na linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura".

 Roland Barthes


As boas conversas são aquelas que fomentam o seu pensamento durante dias, semanas, meses. Que fazem as ideias virarem capim em estômago de vaca (esterco, esterco meu, existe alguém mais lírica do que eu?).


Fazia tempos que não pensava sobre essa coisa toda de poesia - ando afastada das paixões arrebatadoras como a literatura e como as paixões. Às vezes é necessário deixar de lado a inspiração pela transpiração, como corroboraria João Cabral.
Vá lá, há poucas coisas que excitam tanto quando ler uma coisa boa e escrever uma coisa boa ou trocar ideias boas sobre escrituras boas etc. ad infinitum.

Numa dessas trocas da vida, voltou a mim a fervilhada sobre as palavras e a poesia.

O problema do valor da palavra atinge tanto os meios pragmáticos de comunicação quanto os estéticos. Escolher a palavra certa pode render louros tanto quanto processos e serjetas sociais.
De qualquer forma, os nossos discursos são sempre elaborados em função do outro, porque queremos que ele concorde conosco. Queremos sempre a adesão narcísica a nosso modo de pensar.
A intencionalidade discursiva na poesia funciona de modo um pouco distinto: ela se relaciona à musicalidade. Ela tem, sobretudo, um apelo aos sentidos físicos e não apenas semânticos. Ela causa vertigem, sonho, mal-estar, tristeza, agonias. A poesia é uma produção estética, e, como tal, apesar de ter pressupostos e propósitos, tem uma função também sensorial.
E há gente que não gosta de poesia e eu só consigo entender isso usando a explicação de que essas pessoas simplesmente não entendem poesia. Como pode não gostar da linguagem no máximo e no mínimo grau? Pound (informe-se) e Barthes num cabo-de-guerra. Abstrações alienantes são ópio do povo dotado de neurônios e sensibilidade.

Roland Barthes (informe-se) escreveu sobre "O grau zero da escritura"; livro que nem li, por sinal. Mas em "Aula" (que eu li), ele diz por que acha que a literatura é a maior trapaceadora da linguagem. A linguagem, para ele, é um sistema fechado, com limitada liberdade. Eu sempre senti isso sem nunca ter sabido quem era Barthes e sempre falei pelos corredores da vida, e houve quem me chamasse de tudo, menos de bonita e descolada. A questão da representação literária ultrapassa as meras intencionalidades práticas discursivas, estas nas quais sempre se sobressai apenas o caráter narcisista do sujeito.

Olha só, neguinho, presta atenção: ser poeta é saber passar a perna na linguagem, é usar as palavras que o povão usa, revelando o mistério delas. Escondidinho. É fácil rimar com mitos gregos, com terminologias das ostras... Difícil é fazer lirismo com pá e enxada nesse latifúndio (informe-se).
E se tem alguém (além de Caeiro) que sabia fazer isso bonito era o amante Bandeira:


Namorados

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
- Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.
- Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listrada?
A moça se lembrava:
- A gente fica olhando...
A meninice brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
- Antônia, você parece uma lagarta listrada.
A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
O rapaz concluiu:
- Antônia, você é engraçada! Você parece louca.

Ser poeta é dizer o óbvio como se fosse a maior novidade. E os poetas se reconhecem, não tem jeito. São todos lagartas listradas, parecem loucos.


Somos loucos. Listrados e gauches.

sábado, 21 de novembro de 2009

OK, Paranoid


Estava numa nostalgia danada do show de Radiohead que fui neste ano, em março, na querida e cinza terrinha de minha amigue Clá. Nem lembro se postei a respeito na época, mas já que meu blog morreu e ressuscitou, não há como saber agora.

Quem estava lá sabe que o show foi uma catarse coletiva. Impecável. Desde o cenário até a setlist  (que contemplou quase todo o In Rainbows e todos os melhores hits da banda, incluindo Creep e Fake Plastic Trees). Foi tudo perfeito, e isso não é confissão de uma fã cega. Thom Yorke, que parece meio estranho com aquele olho tosco, me surpreendeu, mostrando uma das melhores performances em palco. Faria Freddie Mercury sentir orgulho.
A colocação das câmeras no palco, resultando em imagens fodásticas no telão, mostrava cada um dos integrantes da banda. Um extremo cuidado da produção. Só louros.


   Thom Yorke: violão, voz, piano, latinhas e o que mais vier.



 
No telão, vários ângulos das caretas dele.                     




Esse revival me lembrou o orgasmo coletivo que aconteceu quando eles tocaram sobretudo Paranoid Android e Karma Police, ambas as canções de meu cd preferido, o "Ok, Computer".
O fato de esse ser meu cd favorito tem uma relação primeira com a estética dele, o estilo, enfim, toda a coisa musical e de identificação.
Mas algo muito curioso, que descobri depois de já amar o disco, é que ele foi feito em homenagem a "O Guia dos Mochileiros das Galáxias", de Douglas Adams, a bíblia nerd. O título "Ok, Computer" é uma referência a o que Zaphod Beeblebrox (o presidente das Galáxias) dizia sempre a seu computador, quando acatava as sugestões da máquina.
A música "Paranoid Android", a minha preferida, é dedicada a Marvin, o melhor personagem da série inglesa. Um robô depressivo só pode ser uma das maiores representações de sarcasmo já pensadas, e ele está lá no Guia.
Muitos amigos meus, que gostam de ambos (a banda e o livro), não sabiam dessa relação, o que me impulsionou a contar essa história aqui. Importante frisar que isso eu vi num programa da MTV, nos tempos remotos em que eu assistia a emissora.

Aproveito também para falar como estudante de teoria da literatura sobre essa série de livros. A mesma pessoa que lê Camões e adora a acuidade de Machado de Assis afirma que O Guia dos Mochileiros das Galáxias é uma das melhores obras dos tempos contemporâneos, sobretudo por sua leveza linguística, originalidade e humor inteligente.
Sem essa de que bests sellers não são obras de qualidade. Se você acha que esse livro é babaca pelo título parecer filme de adolescente, desconstrua isso já e pegue o primeiro livro da série para ler. Vale a pena.


 Marvin, o Androide Paranoide. 

De um modo geral, percebe-se na estética do "Ok, Computer", de Radiohead, muitos elementos que dialogam com o cosmos do livro de Douglas Adams. Nas músicas, o futurismo e a ficção extrapolam os limites do clichê e do lugar-comum. Radiohead consegue explorar os elementos eletrônicos sem sufocar o lirismo musical, misturando os instrumentos aos "crec-crecs" fabricados de uma maneira viciante.

Se eu já gostava do cd sem saber que ele era um diálogo com um de meus livros favoritos, depois de saber disso e de atestar pessoalmente a qualidade musical do Radiohead, Paranoid Android entrou para a tilha sonora da minha vida. Dignidade pura.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Rebundantes

"Repete-te para sempre, em todos os corações, em todos os mundos."

Cecília Meireles



Déjà'vu, Djavans, pressentimentos, apréssentimentos.

Escrever tem me causado uma sensação de repetição, de redundância contínua. Embora as pessoas novas não me achem clichê - afinal, é a primeira vez que me ouvem -, eu sei que eu já disse isso ou aquilo algumas vezes antes, a novidade em mim não existe para mim.
O mesmo tem acontecido quando vou escrever meus textos, com exceção dos acadêmicos, que normalmente são paráfrases de outros e não de mim mesma.
Cansa se repetir, mas, às vezes, quando menos se espera, pode-se repetir para alguém tão novo que a impressão é de que você é quem está novo, como uma paráfrase muito bem enfeitada, como palavras bonitas de poetas famosos.
Já disse também que vejo uma semelhança incrível entre química, literatura e gente, quando se pensa que as combinações infindas podem resultar em produtos novíssimos e inesperados. Sempre.

O que resta é ficar feliz por ser mais redundante que rebundante, como tantos por aí. Entenda-se o que quiser.


Discurso fragmentado é a velha moda do verão.

A lógica temporal é uma convenção babaca, mas da qual todos nós somos escravos. Às vezes. Noutras, a gente esquece dela.


Há palavras fermentando. Há palavras em mim. Mas há muito mais de mim nas palavras.

Sobretudo. Sobre tudo. Sobrar é bom, ruim é faltar.



Costura-se retórica. Onde?

As palavras são dedo-duras. Hard Rock Words. The word gets around.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

(Des)necessária


"Necessário, somente o necessário
O extraordinário é demais"


Mogli, o menino lobo



acessório
Datação: 1534

adjetivo
1 que se junta ao principal; suplementar, adicional, anexo
2 Derivação: por extensão de sentido.
que tem importância menor; secundário, dispensável

substantivo masculino
3 o que se junta ao principal, sem lhe ser essencial; detalhe, complemento, achega
4 peça ou objeto que serve de adorno ou complemento (p.ex., do vestuário, como cinto, bolsa etc.)


accessório; ver antonímia de necessário



Do Houaiss (adaptado).




Os acessórios também podem ser usados para adornar móveis. Como, por exemplo, um vaso ou um porta-retrato na estante. Com ou sem eles, a estante continua servindo para o que foi feita.
Quando estudamos sintaxe, aprendemos que há os termos integrantes e acessórios da oração. Os primeiros não podem faltar; os últimos podem existir ou não.
Os cintos - e como eu sinto! - passam de moda, e são deixados no fundo do closet. As bolsas, idem.

Ser ou sentir-se acessório é o maior pavor da que vos fala: a saudade é a contra-partida do esquecimento. Uma vez que não sentem a sua falta, você pode ser parte do grupo dos acessórios: o contrário do necessário; desnecessário.

O ostracismo é cruel. O esquecimento é muito pior do que o ódio. É pior do que se entrevar.