quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

E a alma dói no texto

A escrita dói em cada um que sente quando escreve. Dói em mim, dói nela, neles, dói nos meus alunos que me imploram,  "tia, não gosto de escrever", e tenho vontade de responder "também não gosto não, meus amores, mas a gente precisa, mesmo que doa". Não digo isso, porque eles me achariam louca.
Sei alguns motivos pelos quais a gente sente navalha na carne quando caneta vai no papel. Escrever é vômito, é deixar sair de dentro as entranhas, escapam as estranhas nuances da gente mesmo, que a gente sabe ou não sabe - mas a gente sempre sabe da gente, sem saber.

Me disseram pra ensinar as crianças a escrever. Eu ensino a doer. Malu disse: - Não consigo, não consigo!, e minha vontade era dizer assim "Não escreva não, menina". Não sei se quero ensinar a doer.

Hoje em dia, escrever continua doendo na minha alma. Mostrar as coisas escritas também, mas faço isso aqui como um exercício de execração pública, assim como fez aquele Cara há dois mil anos. Mesmo que a mim só as paredes ouçam, neste quarto os males saem, doem, e faço isso porque só posso gostar da dor, porque tudo acaba um dia, as pessoas acabam, as coisas acabam e escrever não acaba. Doer não acaba mais.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Intermitência

Ao espaço vazio entre dois corpos.


A multidão é a contramão do ínterim. É a contrapartida do vácuo de que nasce a saudável solidão, que fomenta o pensamento, o dilaceramento de ideias, conjecturas.
A conflituosa necessidade de intervalos permite as solidificações - uma construção necessita que sequem os concretos, cimentos, rebocos, pós de areia transformados em paredes, depois quartos, salas, enfim os lares. Seca chão, corrediça, porta, teto. Sequem em seu tempo de secar. Obras atrasam. Prazos são previsões ilusórias.
A saudade é a certeza de que a partida é necessária. A hora da partida alimenta a saudade. A hora da partida é a certeza.

"Somos pó de estrelas, somos todos restos de estrelas", disse a cigana. Somos estrelas que morreram para que pudéssemos ser. O que as estrelas diriam se nos vissem hoje? 


No chão do mundo, infinidade de confetes fingindo areia de praia, grãos coloridos de saudade, intervalos, certezas. A saudade é a certeza, é a criança que diz - não! - e quer dizer não. Ou não.

Chocam-se os copos em nome dos corpos.  Tim-tim! Tocam-se os corpos em nome dos copos corpos copos cópulas corpulentos milímetros de intermitências gritando feito multidão. Pulando coloridos pedaços de saudade, areia cheia de cor, corpo, confetes, sargaço, serpentinas, repentinos copos chocando-se no pedaço infinito de saudade, os corpos respirando o espaço entre corpos.

No princípio, era o verso - que nasce antes do verbo.       

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Fados Carnavalescos

Relações que começam e que terminam no carnaval são o tema de uma matéria que uma conhecida vai fazer. 
Ela disse: - Se conhecer alguém que começou a namorar ou terminou o namoro neste carnaval, me avisa.

Respondi que minha vontade era não apresentar ninguém que se encaixasse no segundo caso; imagino sempre que terminar coisas - relações de qualquer natureza, sobretudo - destoa de carnaval, que é tempo de celebrar. 

Oficialmente, o carnaval começa no sábado, o Sábado de Zé Pereira. O Sábado de Zé Pereira começou a ser chamado assim ainda no Brasil Colônia, quando grupos de portugueses saíam às ruas tocando grandes tambores e anuciando o começo do Carnaval. Esse grupos ficaram conhecidos como Zés Pereiras, segundo a informação do Acerto de Contas.
Extra-oficialmente (isso ainda tem hífem?), sabemos que, em Recife/Olinda, o carnaval começa bem antes disso. Pelos idos de dezembro, já podemos ir para as prévias nas ladeiras olindenses, cheias de gente feliz, com o espírito livre de folião prematuro. Não há palavra que mais combine com carnaval do que liberdade.
A oficialização das datas e nomes para referências é mesmo importante para que se estabeleçam parâmetros, que se ordenem os fatos (sumidiços fatos datas o tempo envolto em visgo), que se marquem os compromissos, se agendem os eventos. No sábado de Zé Pereira, por exemplo, sai o Galo da Madrugada em Recife; os vários blocos em Olinda; tem também show sagrado de sábado de Lenine. É no sábado que se pensa, "enfim, é carnaval".

Um amigo tem uma interessante superstição (levo sempre uma hora para conseguir escrever essa palavra corretamente) de que o que acontece no primeiro dia do ano está marcado para acontecer o ano inteiro. É uma ingênua crença, é claro, como todas as outras, que dependem da fé do supersticioso para vingar ou não.
Mas... não foi mesmo Deus que disse em algum lugar que a fé move Montanhas?

O que acontece no primeiro dia de carnaval acontece também o ano todo. 
Isso não foi Deus quem disse não.
E tenho fé.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

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Para Hilda


bemequer malmequer bemequer malmequer bemequer malmequer
por que não tiraram o hífem do bemequer? dava até pra economizar uma letra!
não faz sentido bem-me-quer malmequer se separa bem me quer não separa malmequer
malmequer deve ser uma palavra só, né?, porque quando querem mal querem mais do que quando querem bem aí bem-me-quer fica assim com três palavras mas pra quê serve o hífen mesmo?
os alemães juntam tudo, pra eles deve ser mais simples bemquerer ou malquerer tudojunto sempre
e não é que eles sabem das coisas?


bemequer malmequer bemequer malmequer

você já fez malmequer com alguma flor?
não fiz, fizeram pra mim.
e deu certo?
sim, deu certo, deu errado, deu malmequer e deu mesmo errado

bemequer malmequer bemequer malmequer bemequer

o resultado dura para sempre?
não sei, comigo durou, continua dando certo, errado tudo errado
quem será que pensou em perguntar às flores sobre o amor?
não sei, deve ser alguém inteligente. as flores parecem saber muito mais sobre o amor do que eu, por exemplo, que não sei o que é o amor nem sei o que é amar só sei fazer perguntas perguntas não sei responder perguntas e me fazem perguntas o que é amar?

malmequer bemequer malmequer bemequer

me disseram que o amor é uma coisa individual, assim que a gente descobre sozinho, sabe, que não depende do outro nem dos outros mas por que todo mundo casa e quer viver feliz para sempre então?
eu acho que as pessoas não sabem o que querem ou sabem o que querem e sabem que não vão conseguir nunca aí arrumam explicações boas para quando não conseguirem não ficarem tão tristes
ah, faz sentido mesmo
todas essas canções e livros e filmes tentam responder à mesma coisa sempre o que é o amor?
mentira, tem gente que não fala de amor, tem música que fala das pessoas
as pessoas procuram o amor elas não sabem o que procuram eu não sei o que eu procuro o que é amor?

malmequer bemequer malmequer bemequer malmequer bemequer

bemequer! vai funcionar?
não sei, acho que só funciona a primeira vez, depois não vale mais, a minha foi malmequer
mas você tem sete vidas, essa é sua segunda vida
não sou pobre nem sou livre nem tenho respostas tenho apenas uma vida já vivi
e agora você morreu?
de certa forma sim, né, sabe como é eu sou outra pessoa
então você tem outra vida se é outra pessoa
se eu tivesse outra vida, não lembraria da passada. é assim que Deus faz com os espíritos ninguém lembra da vida passada senão atrapalha a próxima vida, ele sabe o que faz, onisciente, onipotente, onipresente, porisso dá certo e eu não morri de verdade

o que é a morte? o que é o amor? malmequer bemequer com ou sem hífen?