quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Todas comemora?


14 de dezembro de 2011. O Santos ganha com o placar de 3x1 contra o Kashima Keysol e todos comemora no Facebook.
Calma. A Folha de São Paulo não pode escrever “todos comemora”. A mídia de massa deve escrever a língua correta!
Foi contra o que muitos facebooquianos protestaram na página do jornal na rede social hoje. O que mais me intriga é que a expressão todos comemora bem como diversas outras compostas pela palavra todo(a)s, no plural, mais um verbo conjugado no singular (todas dorme, todos grita etc.) são febre na rede do Facebook, e quem as usa não o faz por não saber concordância verbal. A expressão tornou-se  uma gíria, ligada às brincadeiras de linguagem com o uso na internet.

Heis que os mesmos jovens que disseminam essas expressões do internetês atiram paus e pedras na Folha de São Paulo porque o veículo de impressa aderiu à moda da linguagem, talvez para que os leitores se reconhecessem na notícia, entrassem na brincadeira, uma vez que a rede social proporciona ao leitor a possibilidade de INTERAÇÃO, o que a mídia monológica jamais permitirá.
Vem à tona o purismo demagógico dos nossos queridos falantes do português, que continuam desejando a língua como uma estátua congelada, mas pouco percebem que eles mesmos mudam a língua o tempo todo. Mas a mídia deve permanecer intacta dessas obstruções na língua, a mídia deve permanecer como modelo de uma linguagem que eles mesmos não usam nas redes sociais.



O que parece é que todos comemora no facebook a vitória no futebol, mas todos não se importa com a discussão sobre a mudança da língua e as possibilidades que o suporte digital abre aos veículos midiáticos da linguagem, como se o que devesse mudar fosse apenas o suporte. Que a ideologia linguística permaneça a mesma. Mudam os modos mas não mudam os pensamentos.

Todas chora.

sábado, 29 de outubro de 2011

o silêncio é a pedra
no sapato
do passado
no pensado
repensado,
despensado,
dispensado
esquecido,
ternamente
guardado,
eternamente
dolorido

o silêncio é a morte da palavra
o nascimento da alma

entre palavras, o silêncio
de quem cala
salva a alma
de quem fala

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O carteiro, o poeta e eu

Entre uma e outra obra sobre mudança linguística, significados, paradigmas e tudo o mais que é acadêmico, dia desses caiu sobre mim uma das obras mais singelas e profundas que já tive oportunidade de ver. Lirismo!

Ouvi falar do filme a primeira vez lendo um livro (Princípios básicos de Lexicologia, Ed. UFPE) da minha orientadora, Nelly Carvalho, cujo trecho reporto abaixo:

"O belíssimo e premiado filme O Carteiro e o Poeta (baseado no livro O Carteiro de Pablo Neruda, de Antônio Skámeta) temos o seguinte diálogo entre Neruda – o poeta – e Mário – o carteiro:
“- O que tens?
- Don Pablo?
- Ficas aí parado como um poste.
Mário torceu o pescoço e firmou os olhos do poeta de baixo a cima.
- Cravado como uma lança?
- Não, quieto como uma torre de xadrez.
- Mais tranquilo que gato de porcelana.
Neruda largou a maçaneta do portão e acariciou o queixo.
- Mário Jinenes, além das Odes Elementares, tenho livros muito melhores. É indigno que me submetas a todo tipo de comparação e metáforas.
- D. Pablo?
- Metáforas, homem!
- Que coisas são essas?
- Para te esclarecer mais ou menos imprecisamente, são maneiras de dizer uma coisa comparando-as a outra.
- Dê-me um exemplo.
- Neruda olhou para o relógio e suspirou.
- Bem, quando tu dizes que o céu está a chorar, o que é que queres dizer?
- Que fácil! Que está a chover, pois.
- Bem, isso é metáfora.
- E por que sendo tão fácil se chama uma coisa tão complicada?
- Porque os nomes não têm nada a ver com a simplicidade ou complicação das coisas. Segundo a tua teoria, uma coisa pequena que voa não devia ter o nome tão complicado como mariposa. Pensa que elefante tem o mesmo número de letras, é muito maior e não voa – conclui Neruda, exausto”.


         Mário e Neruda


O filme é italiano (1985) e, apesar de premiado, acredito não ser tão difundido por aqui. Ele conta a história de um homem extremamente simples, mas também assim sensível. Mário Ruoppolo era como uma pedra não lapidada, vivia numa cidade minúscula da Itália, com gente da pesca. Parecia mesmo uma pedra daquelas que ficam no mar. Na cidade acidentada, privilegiada pela geografia com uma vista exuberante para o mar, eram todos muito pobres. Um dia receberam a ilustre visita de um poeta famoso que havia sido exilado do Chile, Pablo Neruda. Esse personagem, que dispensa apresentações, trouxe uma nova vida ao lugar. Os correios só tinham um destinatário: o poeta Neruda, que recebia presentes e cartas do mundo todo, sobretudo de mulheres encantadas com seus poemas de amor. Mário, que não queria pescar, colocou sua bicicleta nas mãos e candidatou-se à vaga de carteiro, viajando ao mesmo destino todos os dias, subindo e descendo aquelas inclinações pedregosas do local, cuja imagem mistura um azul translúcido e cor de terra ocre. 
Assim o simplório Mário começa a sua aventura pelo reino das palavras e seu coração ganha asas: Neruda o ajuda a achar palavras para seus sonhos, desejos e angústias. Ainda mais: ele aprende a fazer metáforas!

As metáforas, para mim, nos ajudam a driblar as obstruções da língua. Ela nos permitem estar mais próximos aos nossos sentimentos e pensamentos através da linguagem. E o homem que consegue usar a linguagem a favor do seu coração se torna sempre mais livre! Mário (querido Mário) foi se tornando cada vez mais livre ao ler Neruda e aprender com ele os caminhos que as palavras abrem a nossa frente. 

Essa relação de amizade me inspirou a pensar o quanto a distância entre nós, humanos, pode ser medida por sentimentos e palavras. Neruda, poeta e político prestigiadíssimo, prêmio Nobel, culto e letrado, se tornava tão simplório quanto Mário naqueles colóquios à beira do belíssimo mar italiano. E Mário foi Neruda, quando esboçou seus poemas de amor, ou mesmo quando os copiou do poeta chileno. Duas singularidades humanamente sensíveis juntas, apagando os selos sociais em prol da construção de um diálogo a respeito da poesia e da vida.

Aqui vai uma metáfora sem rimas, dedicada ao Mário, carteiro, humano, cheio de desejos, sonhos e inquietudes do espírito, que me encheu de poesia, simplicidade e esperança:

Esse filme é como um poema de Neruda: arrebata o coração e rasga a alma. Assim como uma pedra mediterrânea arrasada pelas batidas do mar azul se despedaça lentamente, ao encontro do oceano. 



P.S.: A atuação de Massimo Troisi  como Mario Ruoppolo é um espetáculo à parte. Vejam.