sábado, 16 de outubro de 2010

Decência, docência, inocência?

O último dia dos professores me trouxe algumas reflexões sobre a prática da decência contemporânea. Não, não foi um erro de digitação. Eu quis mesmo dizer decência, porque hoje pouco acredito na docência que não por decência, digo o ensino por vocação, fé, doação.

Muito já critiquei a visão do professor como agente de caridade. Quando comecei a trabalhar com educação, via os debates sobre a autenticidade do labor docente, como uma prática legítima do exercício social do trabalho e não como afetividade. 
Nas universidades isso pode ser autêntico, mas por outro lado, quando observamos a terrível realidade da educação básica hoje (e não estou falando apenas do ensino público), vemos que ser professor não pode ser dissociado de uma paixão veemente e de certo altruísmo. 
Ensinar, hoje, é sim um ato de doação. Mas não apenas para com os alunos. É um ato social. Todo bom e comprometido educador encerra não apenas com seus alunos e suas instituições um compromisso transcendental de trocas, mas sobretudo com a sociedade. 

Tudo isso porque os obstáculos visíveis e invisíveis que se erguem diante da prática pedagógica vão além de materiais físicos e estruturais. Quadros brancos, retroprojetores, multimídias? O maior muro que pode existir entre duas pessoas são suas próprias essências. Visões de mundo, percepções e materialidades educacionais que emergem de cada ser humano comumente entram em choque quando o necessário nesse momento seria um eclipse.

Uma obra cinematográfica incrível que nos mostra esses muros dos quais falei é o filme "Entre les murs", traduzido para nós como "Entre os muros da escola". Tão bem ficcionalizado que é, o filme parece um documentário sobre a realidade nas escolas das periferias de Paris. Ele mostra os grandes desafios vividos por docentes que trabalham nessas escolas, em que estudam adolescentes de diversas culturas do mundo, com ideologias e dogmas muitas vezes polares.


E o melhor de tudo é que, depois de expor todos os dramas da vida docente nesse contexto, esse filme não faz como muitas produções americanoides - também baseadas em fatos reais - que mostram um lindo final, em que as escolas se renovam e os professores conseguem mudar a realidade triste dos excluídos sociais. Não, os muros de Paris são altos, intransponíveis por qualquer romantismo cinematográfico que esteja em busca de apelo em nível autoajuda.
Este filme mostra algo da realidade de todo professor moderno, que enfrenta a diversidade em sua sala e se vê angustiado na escolha de métodos, artifícios e conteúdos, na tentativa de acrescentar e mudar a realidade da sociedade para melhor. Para nós, o desafio é transpor os muros da linguagem dos alunos, depois dos preconceitos e deformações psicológicas familiares e depois da administração e projetos pedagógicos aleijados das escolas. Escolas de onde os professores são agentes reprodutores e não transformadores, o que irá se repetir nas ações dos que estão sendo formados, perpetuando os erros da sociedade de hoje e fertilizando os novos do amanhã. 


Enquanto isso, uns ou outros herois, que fazem e acreditam na transformação de modo crítico, continuam nas salas de aula com suas vozes cada vez mais roucas, suas contas bancárias cada vez mais parvas e sua esperança cada vez mais escassa.

Um feliz dia dos professores a nós, entre os muros do Brasil.

2 comentários:

Simone Reis disse...

Muito bem escrito, Ritinha querida, e sem pessismismos ou falta de crença na profissão. Pelo contrário, um texto que mostra somente a realidade do que é ser professor (onde quer que seja)hoje em dia.Não é porque somos professores por amor, vocação, por acreditar que podemos fazer uma diferença...que estamos ou somos cegos aos "muros" a nossa volta.
beijão,
si

Rodrigo Bertamé disse...

bom ver que voltou com força total