segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Blackbird: into the light *

A minha vida vale todas as coisas que me inspiram a buscar tudo o que eu ainda não sou, mesmo que nunca venha a ser.

Blackbird é um poema escrito por Paul McCartney, meu beatle favorito declaradamente. Digo que é um poema porque se há algo que aprendi nesses quase 23 anos é a reconhecer a poesia nas coisas que a contém. Nessa letra há tanto poema quanto música. Além de tanto manifesto a ser seguido por todos nós que buscamos o nosso voo, a nossa liberdade, que é a própria busca.

Essa canção foi lançada em 1968, em um dos álbuns mais adorados dos Beatles: "The Beatles" ou o "White Album". Nessa época, a música deles tinha atingido um grau de maturidade suficiente para muitos já saberem que sua obra seria imortal e clássica. 
Sobre sua composição e motivação, há algumas especulações. A letra fala sobre um pássaro negro, um melro, que enfim estava livre para cantar. Nessa ocasião, havia acontecido o assassinato do ativista americano Martin Luther King, e o termo "blackbird" sempre foi usado para se referir a pessoas de origem africana, desde os tempos do tráfico de escravos. Paul declarou que a música não foi escrita para um melro, foi mesmo inspirada numa música de Bach que aprendeu na adolescência. Disse que estava sim, em parte, pensando na situação da luta racial nos EUA.
A metáfora da prisão com a imagem de pássaros na gaiola é bem simples. Simples? Pois as poesias mais lindas que já li em toda minha vida falam do tesouro prosaico invisível aos olhos dos mortais. A metáfora da libertação dos pássaros com a sua saída de gaiolas é diluída na nossa cultura. Mas nesses pouco mais de dois minutos de canção, fica claro que não há imagem esgotada para os olhos de um verdadeiro artista.

Pensando em canção e liberdade, lembro o verso de Hilda em "Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé" que diz: canção e liberdade não se aprendem. Nós todos somos pássaros negros e nascemos com eles dentro de nós. Latente e eterno é o poder de sermos livres e de nos livrarmos de qualquer amarra cruel, assim como me diz essa obra fantástica de Magritte:

(Les affinités électives - René Magritte - 1933)

Somos colocados em gaiolas desde a nossa geração e gestação, quando nos ventres de nossas mães somos posse de seus corpos. Depois, passamos a pertencer a seus desejos, instintos e vaidades. E quando nos permitem andar pelo mundo, saímos de casa para a gaiola da nossa comunidade, dos que esperam sempre algo de nós.
No livro que tenho sobre as histórias das canções dos Beatles, Steve Turner diz: "Paul gosta de citar 'Blackbird' como prova de que suas melhores canções vêm espontâneamente, quando letra e música transbordam como se surgissem sem nenhum esforço consciente da parte dele".

Narcisista que sou, devo venerar Paul porque me sinto como Paul. Amo tudo o que vem de mim sem nenhum esforço. Como o pássaro preto que vou me tornando naturalmente aos poucos, quebrando a casca do ovo, os aços da gaiola, a força da gravidade e o silêncio com as lindas canções que só os pássaros podem cantar. "You were only wainting for this moment to be free".

Tradução de "Blackbird" por Carlos Drummond aqui. Créditos a Guilherme Gatis.

*A você, por fazer parte de todo e qualquer movimento meu de canção e liberdade.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Quixotesca

Sempre achei a escrita algo fascinante, desde a minha mais remota infância. Lembro que tudo envolvido nesse ato me interessava demais, inclusive os acessórios, supérfluos ou não. Papeis coloridos, canetinhas coloridas, pautas azuis ou pretas, papeis de carta, agendas... Em geral, esses materiais palpáveis eram indissociáveis do ato não somente da escrita, mas também da leitura. 
Esse gosto misterioso foi ganhando mais forma ano a ano, enquanto eu tomava forma de gente. Gostava das aulas de redação; e suspeito que muito mais pela oportunidade que tinha de preencher as atividades do livro e aquelas folhas de texto do que propriamente do estudo formal da coisa. Eu gostava mesmo era de fazer.
Hoje em dia, depois de uma graduação inteira, depois de ter passado por períodos de engodo agonizante da minha própria escrita, por ter que encará-la de forma racional e lúcida, depois de nunca mais ter a agenda livre, sem uma pendência de escrita sequer, me pego pensando sobre minha verdadeira relação com esse processo.
Ensino as pessoas a escreverem, acreditando no meu mais profundo que isso não é completamente possível. Estudo a escrita de modo quase religioso. Sim, porque o meu não saber atinge margens tão grandes que só posso continuar a fazer isso dependendo da minha fé cega, de um dia conseguir fazer uma afirmação categórica e completamente segura.

Escrever já foi para mim a fuga dos românticos, o gofo dos desesperados, os ensaios dos estudiosos...

Hoje, me pego aqui em frente a uma tela, sempre, sem nenhum papel colorido, sem rabiscos de versos em coletivos, sem canetinhas coloridas. Surpreendo-me a mim mesma sem saber o que é e o que escrever. Afinal, escrever é sempre quando se tem algo a dizer? Pois tantos já disseram por mim.

E passo os meus dias futuros apenas desaprendendo a escrever o que eu sempre achei que soube. Meus moinhos de vento erguem folhas de papel em branco e minha lança em forma de lápis nunca os alcança, como num quadro que eu vi.